segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Com licença

Com licença. E olhou para a plateia escura, chorosa, pensativa, silenciosa, abrigada debaixo de guarda-chuvas, também eles tristes e molhados. 
Sem ninguém dizer nada, percebeu que havia ordem para prosseguir. E começou a tapar o caixão. Pazada atrás de pazada. Terra com terra, com terra. A dada altura, um montinho já moldado. As flores por cima, as despedidas, os lamentos nas cabeças de cada um. Os lamentos na cabeça de cada um.

Todos têm lamentos para lamentar num funeral. E, às tantas, muitos caem na tentação: choram o morto, sim, o que acaba de chegar (ou de partir?) à terra e, quando dão por eles, choram os outros que para lá já foram descansar, enganados pela vida. Morto puxa morto. Tristeza puxa tristeza.
E quando ele disse "com licença", sentimo-nos todos autorizados.

Bolas, quem morre merece um choro só para si.

Ai que isto funciona como um gatilho. Já chorei por outra pessoa. Bolas. Mas cada morto merece um choro só para si, sem dúvida. Uma cabeça cheia de si, da sua vida, do que fez e do que não fez. Ou então, só a lembrança da sua cara. Ou então, só a lembrança daquele beijo na praia, daquele sorriso quando venceu, daquele gesto de amor quando... Cada morto merece, na hora da partida, cabeças cheias de si. E um chorinho só para si.

Mas isto tudo, tão chuvoso, tão silencioso, tão sentido, dispara-nos directo no coração. Ai que isto funciona como um gatilho. Desculpem todos aqueles que já morreram e que não puderam gozar da exclusividade merecida. Todo o morto merece um chorinho só para si. E uma cabeça cheia de si. 

Merece os passos sem som que são dados no último adeus. Merece os soluços calados. As lágrimas sem pernas para correr. A sensação de vazio que fica. Quem morreu há-de merecer a exclusividade dos corações partidos. Ai sim. Se ainda houver essa capacidade, perdoem os mortos que tiveram que partilhar, na sua partida (para onde, para onde?), o choro com outro alguém, algures dentro do coração de alguns dos presentes da plateia escura, chorosa, pensativa, silenciosa, abrigada debaixo de guarda-chuvas, também eles tristes e molhados.

Todas as pessoas merecem um chorinho só para si. 

Um beijinho.



2 comentários:

  1. Muito bom! Como sempre!

    Só é possivel quem morre ter um chorinho só para si, quando nos é mesmo muito próximo. Caso contrário, choramos também alguém mais próximo que já partiu... Não como evitar.

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