segunda-feira, 22 de setembro de 2014

A minha avó espantalho


A torrada queima na pontinha e o cheirinho a esturricado espalha-se pela casa, juntamente com o café quente que tem ideias de sair da chávena, em jeitos de vapor. Preparamo-nos  para começar um sábado de algarraza, bebés que choram e riem, menino que quer queijo no Cerelac. Onde estão os bolinhos da D. Coisa, os de canela, escondam-nos e fiquem com eles só para vocês...! Começa a provocação.

E chegas tu.

Calças de pijama, saiote e saia por cima, vestido de seda a agasalhar tudo com que já cobriste o corpo confuso. (Falta aqui um coiso...aquilo - polegar a esfregar no indicador -  um agasalho?) O casaco do genro, pesado, gigante na proporção de carnes tão pequeninas e murchas, a compor o modelinho. Depois, a mala de mão, sempre a mala de mão, como quem está de partida, sempre de partida. Para onde? (Quando não se sabe de onde se está a partir, nem que tipo de existência já somos, é possível traçar um objectivo, ou um destino?).

Vemos-te assim, qual espantalho pequenino, avó.  E queremos muito rir, de tanto querer chorar, de tanto não saber o que dizer ou sentir. De tanto querer que chegasses à sala e soubesses quem somos. E que a saia não se veste com o pijama por baixo, avó.  E que o casaco do marido da tua filha não é adequado para ti, avó.

Então, hoje não vou para o trabalho?
Hoje é sábado avó, não vais para o "trabalho". Hoje ficamos aqui todos em casa, senta-te aí, senta-te.

Nãããoooo! Avó não tires a bebé do parque, tu já não podes com ela, ela cai, tu cais, aleijam-se.
Oh, oh, tão lindo, este meninooo, diz  surpresa, de olhar deliciado.
Avó, dá-ma cá. É uma menina avó. Senta-te aí que eu ponho-ta no colo um bocadinho, mas depois ela vai para o parque e deixa-a ficar ali a brincar, tu já não podes...

Nãããão! Avó, então?
Tu já não podes... Tu cais, ela cai....
... É uma menina... Não te disse já...?

Nãããoo. Avó! 
Deixa estar a menina!
.. Tu já não podes com ela, ... é perigoso. Não te disse já que... 
Não posso porquê? Não posso pegar no menino? Anda cá bebé.... E estende também ela os braços, uma bebé tão velhinha, vestido de espantalho. 

Acabou-se! A menina vem para o meu colo.
A avó está triste. 
Eu sei, mas que posso eu fazer? Ela não compreende.... que já não pode, que podem cair as duas, que é perigoso...
Avó! Olha, tu já lhe pegaste um bocadinho, não já? Mas não podes tirá-la assim do parque, porque é preciso muita força e tu já não podes, é perigoso para as duas. Percebes?

Pois.
Olha um menino tão ´benito´, tão ´benito´. Oooh...
Pega na mala e aproxima-se da porta, estará na hora de ir para o trabalho, alguém a levará, alguém a irá buscar. 
Porque tardam? Hoje não vou para o trabalho? Quem é esta gente?
Olha, um bebé! Tão ´benito´, é teu?

O sol, na nossa casa de meninas, cheira a pinheiros e brincadeiras.
Hoje, brincam os nossos filhos e nós vivemo-nos ali há décadas,  ainda a perceber como é que passámos de filhas com pais, a mães com filhos e avós,  assim, num abrir e fechar de olhos. E com avó velhinha, aquela que é hoje a bisa dos nossos filhos.

Para ela, o fim do dia não pode estar longe e, por isso, as portadas da casa têm que se fechar. 
Primeiro as do meu quarto, depois estas todas que para aqui estão. Está de noite, não percebo porque é que esta gente não vai embora!

Mããee! Deixe estar as portadas abertas, ainda é dia, não vê? Está sol. À noite é que se fecham as portadas, deixe estar isso aberto e venha fazer o seu croché aqui para o pé da gente, vá.
Olha lá (diz baixinho), esta gente não se vai embora hoje? 
Não mãe, elas dormem cá com os pequeninos, só vão embora amanhã.
E onde dorme 'isto' tudo?
Não se preocupe que elas têm os quartos delas. 
Oooh, olha ali outro bebé!
São os seus bisnetos! Então, olhe lá, acha que eles são filhos de quem?
Pois.
Acha que eles são filhos de quem, mãe?
Pois. 'Nã' sei! E ri-se, como uma menina traquina que não entende conversa de adultos.
São filhos das suas netas, olhe aqui!
Hum, pois, pois. São bonitas! Bom, vou me 'adeitar'. Esta gente não se vai embora? Está de noite.

Oh avóooo. Deixa as portadas abertas, que ainda é de dia, avó.
Avó?
Hum? 
Deixa as portadas abertas que ainda é de dia.
Vou-me 'adeitar'.
Está bem, vai lá. 

Sei que não sabes que é Verão mas sabes como te chamas. 
Como se chama dona Catarina, perguntam-te muitas vezes, nos últimos anos. Ca- caaa... ta...catariii.... Eu? Chamo-me Catarina-da-Silva-Pereira! Respondes quase cantando.

Mas não te lembras, com certeza, que por vezes te chamava pombinha, na brincadeira, quando telefonavas aqui para a minha casa. Sei que sabes que esta casa é um sítio onde estás bem, mas não sabes que tu também já tiveste uma, onde tinhas um marido e recebias os netos com pão e fiambre fresquinho, que compravas com dinheiro, avó.

Di-nhei-ro! Dinheiro é aquilo que te esforçavas muito por poupar, que depois passaste a achar que não tinhas de todo e que fazia falta para alguma coisa que já não sabias bem o que seria e que hoje não fazes a mínima ideia se é coisa que se coma ou se enfie nos pés.

Sei que o teu coração ainda sabe caminhos para o amor e, sabes uma coisa avó, isso faz-me muita confusão. Como pode alguém gostar de outro alguém sem ter memória da história que o desenhou? E sobre os dias em que acordas de chorinho enrugado de menina perdida? Tanta lágrima desnorteada. Como chora um coração uma filha que a cabeça esqueceu?

Amanheceu novamente. Tudo dorme ainda. Ela já esqueceu que dentro dos quartos de porta fechada há gente que, por acaso, são as netas com os maridos e os respectivos filhos que, por seu lado, são seus bisnetos. Que são bebés que ela já conhece e que vai chamar menino à menina, e menina ao menino.
Com o roupeiro ali à mão, adiantou trabalho àquela pessoa simpática que todos os dias cuida dela, e tratou de se vestir. Calcinhas quentinhas, saia, camisinha apertada até cima, colar de pérolas e até brinquinhos. Tudo por cima do pijama e de um soutien algures empoleirado num braço.

Olha para as escadas que dão acesso ao primeiro andar da casa e bate palmas, como quem chama, sem chamar. Porque não sabe quem está a chamar, nem porquê. Tem fome. 

Dos quartos começa a sair a algazarra em forma de gente pequenina.
Oooohhh, olha um, dois bebés! Tão ´benitooooss'! São de quem?
Sorri. E pousa a mala de mão um bocadinho no chão. 
O trabalho pode esperar.