sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Oração [incompleta] de uma mãe




Dei por mim a fazer um género de oração interior.

Tu pediste colinho para dormir e eu aproveitei, oportunidades destas já vão sendo poucas. Cresceste. Mas ainda és bebé. És sim.

Não pedi a Deus, pedi a ti, na esperança de que o teu peito quentinho em fase de pré-sonho sentisse as minhas preces. E as absorvesse.
Coração com coração, resulta sempre.

Pedi-te, primeiro que tudo, que fosses muito feliz.
Que saibas construir a tua felicidade, meu amor. Sonha, sonha muito. Mesmo que sejam coisas loucas: sonha! E dá passos para realizar os teus sonhos, sejam eles gigantes ou ínfimos aos olhos dos outros. Nunca deixes de sonhar. O sonho comanda mesmo a vida, ó pequenita!

Que saibas ser grata a quem, de alguma forma positiva, te ajuda a ser pessoa. Agradece sentidamente a quem te faz feliz, não deixes para depois, muito menos, muito depois. Agradece com o teu sorriso, com palavras, com um abraço, com carinho, com um aperto de mão, com o teu amor, com a tua memória.

Minha filha, não imponhas limites à tua liberdade, sempre que ela não esteja a interferir com a de outro alguém. Espero que consigas sentir-te livre para viver a vida na sua plenitude e que, de braços e mente aberta, consigas abraçar o teu mundo.

Faz escolhas. Espero que saibas fazer escolhas, tendo sempre em mente que uma amizade ou um amor não se trocam por nada, cultivam-se, mimam-se até à exaustão, respeitam-se. Exige para ti não menos do que aquilo que te faz feliz. Espero que saibas virar as costas a quem não te respeita. Vira mesmo e não olhes para trás. O teu mundo será aquilo que tu quiseres colocar lá dentro.
Escolhe o que te faz saltar da cama ainda de madrugada, escolhe comer aquilo que te faz lamber o pires, escolhe aquilo que te faz fechar os olhos só de imaginar, escolhe quem te faz chorar de alegria...

Espero (e sei) que (vais) ames (amar) muito. Ama sem limites. Conjuga a palavra amor com quem bem te apetecer, nas alturas que te apetecer. Alimenta um amor verdadeiro. Não tenhas medo, que o coração aguenta apesar de, às vezes, parecer que vai rebentar. Ama os outros, deixa que te amem. E ama-te a ti própria, sem intervalos.


E lava sempre os dentinhos, filha.

A mãe

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

A apologia de uma creche e o primeiro TPC dos pais



Quando chego à sala polivalente e a vejo tranquila, enlaçada em braços meigos, à espera de quem lhe abre um sorriso ansioso e lhe quebra a moleza do fim de dia... sinto uma alegria maior que eu.
Já passaram algumas horas desde que demos aquele beijinho matinal - que, às vezes, tem um chorinho na despedida - e estamos com saudades uma da outra. Muitas. 

Ela já sabe que a partir dali, somos só nós novamente, o nosso passeio até casa, com paragens debaixo das árvores para ver as folhas, para sentir o vento na cara, fazer carrossel, ver um ou outro cãozinho que por ali passe. Depois o banho, os peixinhos a chapinhar na banheira, brincadeiras e risos, conversas esquisitas que, afinal, significam tanto para nós as duas, o teu jantar com a fruta escondida para não saltarmos a sopa e o segundo prato, tentar cozinhar contigo agarrada à minha perna, as molas todas espalhadas no chão, o pai que chega, a algazarra doce do costume, a nossa vez de comer ao ritmo das tuas refilices de sono, o leitinho quentinho - páááá-pa! - , mimos, tantos mimos, vejo-te adormecer e penso: És o melhor de tudo. Todos os dias penso isto. 

No outro dia, saímos novamente rumo à escola. A árvore de Natal cada vez está mais bonita com os trabalhos dos outros meninos. Casaquinho no cabide, espreitamos pelo vidro da porta e, lá de dentro, quem nos vê abre sorrisos e bons-dias apetitosos. Há abraços prontos: dos meninos e meninas de bibes e das meninas crescidas - educadora e auxiliares - que já sabem que queres ver a rua, que pedem beijinhos e turras e que compreendem, pois claro, que naquele momento ainda não há nada para ninguém.

As paredes da sala têm renas feitas com mãos pequeninas que se encheram de tinta. Weeeee! Tinta, que bom que deve ter sido! E a festa de Natal está à porta, vai haver espectáculo: o que conseguem treinar criaturinhas tão pequeninas e verdes nestas lides do show? Desconfio que é canção porque a Mel anda a cantarolar melodias desconhecidas do portefólio caseiro. Es-tou-an-sio-sa!

Uma festa de Natal e a minha bebé lá metida. Sim, isto deixa-me feliz. Vai ter que ir de azul. Pode ser até que arrisque uma fita nesse dia, porque quero que sejas a mais azul e linda de todas as bonecas lindas e azuis que vão brilhar num palco que, flutuará, com toda a certeza, com a baba de todos os pais.

E e a estrela? Qual estrela? "É para os pais levarem para casa e trazerem decoradas!". ´Ca nerveeees´:) Correria aos chineses? Papelarias? À dispensa? Ao saco dos enfeites de Natal? Ao saco das coisas que não interessam nada mas que estão guardadas porque nunca se sabe...? Ó meu Deus, a estrela da miúda. Te-mos-que-fa-zer-uma-estrela-linda! 

É o nosso primeiro trabalho de casa enquanto pais!
E por isso este post.

Por isso e porque queria fazer a apologia da creche. 

A apologia de um espaço onde há meninos e meninas que se abraçam, beijam e beliscam, que partilham mãos cheias de ranhoca - as mesmas que sentem o que é o barro e as massinhas - , que cantam e dançam, que ouvem música clássica e decoram a canção da chuva, que aprendem a comer com colher, a dormir em conjunto, o valor do silêncio, do respeito e da partilha.

Se há coisas boas em crescer num ambiente exclusivamente caseiro? Pois, com certeza - assim de repente ocorre-me dizer que a Mel está com tosse desde Outubro! Mas sou apologista da creche porquanto ela proporciona pequeninas - grandes,enormes!? - coisas que dificilmente se replicam no ambiente-redoma do ninho.

Depois de muita procura nas prateleiras "chinesas", agarrei-me a umas embalagens miniatura de queques e um saco de coisas verdes a imitar musgo, cheio de pó.
Em casa, tirei da gaveta guardanapos, cola, tesoura.

E fiz uma oração ao Senhor das Inspirações:
Ajudai esta pobre mãe no seu primeiro TPC.
Ajudai-me a criar uma estrela cintilante que orgulhe a minha menina.

Ai pá, e ele ajudou-me, caramba! :)
A Mel não ligou grande coisa. 
Mas e eu? Estou que nem posso, orgulhosa disto pá!



Xanaaaam!

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Dá de comer à menina, anda!

A menina está com fooooome!
(Então não se vê logo?)


A vontade maluca que os adultos têm em dar comida às crianças é indesmentível. E se for alguma coisinha que nunca tenham experimentado ou que desconfiem que os pais "mauzinhos" ainda não se lembraram de dar a experimentar, xiiiii, é perfeito!

Toma lá! Gostas, gostas?
A menina adoooooora!!!!
(Claro!)

Neste campo já não tenho ilusões: o que para mim é óbvio, pode não ser para a mãe ou pai que está exactamente ao meu lado, e que até tem a minha idade e uma vivência parecida. 

Para mim é óbvio que ainda não chegou a hora da Mel, com 14 meses, comer chocolate e bolos e "arraçados" açucarados. Não, ainda lhe dei a experimentar uma bola de berlim! Oooohhh!
Mas pastel de nata já provou. E gostou! E bolinhos caseiros, sem creme. Pronto.

Para mim é óbvio que ainda não chegou a hora da Mel comer carne de porco preto, batatas fritas, mariscos ou frutos secos. E também é óbvio para mim que é melhor dar-lhe iogurtes de aromas do que "suissinhos" e ou semelhantes com smarties ou pepitas de sabe-se lá o quê! 

Para beber? Água, muita água. É óbvio que refrigerantes não acrescentam nada, tem tempo de os beber e não me vou opôr, mas se vou tentar moderar o seu consumo? Vou. Darei o meu melhor, logo se vê que resultados se consegue.

Influenciada pelo primeiro ano de vida de restrição alimentar que rodeia qualquer bebé? Talvez um bocadinho, vá...

Não é fácil ouvir assim, da boca da pediatra, que a nossa menina está em condições de receber o seu diploma de emancipação alimentar!

Lembrar-me desse dia, dá-me vontade de rir.

 - Pronto, então a partir de agora, a Mel pode fazer a alimentação dos pais.
 - Ai sim? A nossa? Bem a nossa exactamente duvido, mas... Pode comer polvo, por exemplo?
 - Sim, pode. Pode comer de tudo, à excepção dos mariscos, frutos secos e ananás.

Outro assunto e volto à carga.

 - Desculpe, ainda em relação à alimentação, ela já pode comer bacalhau?
 - Sim, pode. Pode comer de tudo.

Outro assunto e ainda andava às voltas com a emancipação da criaturinha...
 - Ó doutora, e grão e feijão também? E ervilhas?
 - Sim, sim, pode comer de tudo.

Ainda incrédula, a não querer aceitar que a cria já estava crescida, vejam bem!, ainda desafiei a pediatra, como quem procura desesperadamente uma restrição.

 - E espinafres....? E....?

Às tantas, rendi-me.
 - Desculpe lá doutora, já percebeu que estou com sérias dificuldades em entender o significado da palavra tudo, hoje!

Rimo-nos, pois. 

Não terei sido a primeira mãe renitente, que custou a aceitar que a bebé, que só bebia leitinho da lata, em biberon cuidadosamente lavado e esterilizado, e que depois só comia puré com três legumes e que depois só comia 20 gr. de carne e que depois só... E que depois só... Passou a também isto, também aquilo... E hoje, isto tudo. Mesmo tudo. 

Qualquer dia, o quê?
Come caracóis e lambuza-se com uma mousse de chocolate caseira, como a mãe? Queres ver!












domingo, 19 de outubro de 2014

Felicidade e Mel



Por mais voltas que possamos dar ao pensamento e às conversas, o que esperamos todas na vida é sermos felizes. E a felicidade pode ser definida (pode?) e sentida de muitas formas.
Para mim, a felicidade não é um traço de personalidade, não é nada definitivo, é uma construção permanente que às vezes resulta, que às vezes dura dias, outras vezes minutos.

O que somos no intervalo em que não nos sentimos felizes? Não sei. Não somos necessariamente infelizes só porque não estamos felizes. Diria que há um estado de existência ameno, em que não somos, nem deixamos de ser, passa-se o tempo e nós por ali andamos.

E depois há o dia em que nos tornamos mães.
Baralha-se tudo outra vez.

Não se passa a viver num estado crónico de felicidade, não. Mas ganha-se uma capacidade imediata de relativizar o universo,  de relativizar os estados de existência amenos. Ganham-se novos materiais de construção e novos braços para pegar na pá.
E tornamo-nos esponjas de sorrisos com dentinhos de vários tamanhos, esponjas de gargalhadas inocentes acompanhadas de palminhas descompassadas, esponjas de beijinhos doces mandados em mãozinhas XS. Derretem-se os filtros e, sem mais, nem menos, somos felizes.

Aqui no blogue, ainda não tinha tido oportunidade de celebrar o primeiro aniversário de quem me provou que a felicidade, às vezes, pode ser objectiva. E ter nome.


Mel.







segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A creche - É possível sermos felizes


De certeza que a couve-flor está a mirrar na água a ferver. O cheirinho da sopa de pessoas pequeninas sente-se logo à entrada e não há qualquer hipótese de alguém se esquecer que entrou num pedaço de mundo diferente.

Levo no meu abraço tudo o que importa mais ao meu coração. As bochechas da Mel já estão ensopadinhas de beijos de mãe que a toda a hora percebe que o melhor do mundo já aconteceu, e em tão boa hora. És linda filha, a mais linda, tu sabes. Serás sempre, não há nada comparável a ti.

Paramos quase sempre para cumprimentar a flor gigante (aos olhos da Mel) que está colada no vidro, e ela estica o indicador e exclama: "Uuuhuuu. Mnhami-tapi?". Respondo quase sempre: "Pois, filha, é a florinha". 

Por vezes subimos o primeiro lanço de escadas aos saltinhos, até ver os peixinhos coloridos feitos com cd's. Ai tão bonitos os peixinhos. Como fazem os peixinhos, filha? Baque-baque. Ela observa-me com atenção, como sempre, e diz de sua justiça. Na verdade, não sei como fazem os peixes, mas é importante que também eles ganhem voz, para que ela se lembre mais facilmente deles. 
Esta coisa de querermos que os filhos conheçam os animais, os sons das coisas, as cores, onde está a tontinha, o olho e a "babiga"... É tão humano e giro.

Ainda antes de abrir a cancela do primeiro piso, paramos novamente quais visitantes de galeria de arte para observar um arranjo outonal de parede, feito de folhas secas. Um dia ajudas a fazer um assim também, filha. Ela quer puxar os fiozinhos, sentir o castanho, a cana... 

Desde que entrámos que só se ouve chorar. Quantos choram ao mesmo tempo hoje, meu Deus?
Até a mim já me apetece chorar!, brinca uma educadora. É segunda-feira e o fim-de-semana trouxe mimos reforçados a todos, como pode isso acabar assim, pacificamente? 

Deixar a bebé na sala não é entregar a bebé. Só percebo isto agora, que sou mãe, não há hipótese de o entender sem viver a experiência. E deixar a bebé é, em si, uma cerimónia de despedida diária que, mesmo que só dure três minutos, é cheia de angustiazinhas e felicidades. Sim, tudo ao molho. Transferir o colo é falar do dia anterior, do pedacinho de manhã que já se passou em casa, do humor com que acordou, das gracinhas, do que comeu, da febre, da tosse e do cocó. É ficar apertadinha quando faz um beicinho a pedir "não me deixes aqui, quero estar mais um bocadinho contigo mãe" e algo circunspecta quando estende os bracinhos para o colinho de serviço e rapidamente se distrai com os passarinhos, assim, sem olhar para trás, nem deixar cair uma lagriminha...

Olho para o cabide que diz Inês Mel, pouso a mochilinha cor-de-rosa de saia de bailarina, passo os olhos pela ementa da semana e espreito-a novamente para ver como ficou. E ela brinca. E ela ri. E ela fala, diz tantas coisas. E aponta. E faz-se ao mimo. E sorri.
E eu? Eu, quase que me desfaço.

Eu, mãe de primeira viagem, fiel companheira da minha bebé até aos 11 meses, consigo hoje encher-me de felicidade quando a vejo brincar e sorrir sem me ter por perto (fisicamente). Sim, é mesmo possível isto. Estamos a crescer as duas.

O efeito "pais voltem todos imediatamente senão choramos para sempre" parece ter acalmado. O silêncio normal de gritinhos felizes venceu a saudade.

Desço tudo outra vez - será que, inconscientemente, digo até logo aos peixinhos cd's também? - e parece-me agora que, para além da sopa de couve-flor, também vai haver carne assada!

Até logo!
Tratem bem da minha bebé mimosa.




segunda-feira, 22 de setembro de 2014

A minha avó espantalho


A torrada queima na pontinha e o cheirinho a esturricado espalha-se pela casa, juntamente com o café quente que tem ideias de sair da chávena, em jeitos de vapor. Preparamo-nos  para começar um sábado de algarraza, bebés que choram e riem, menino que quer queijo no Cerelac. Onde estão os bolinhos da D. Coisa, os de canela, escondam-nos e fiquem com eles só para vocês...! Começa a provocação.

E chegas tu.

Calças de pijama, saiote e saia por cima, vestido de seda a agasalhar tudo com que já cobriste o corpo confuso. (Falta aqui um coiso...aquilo - polegar a esfregar no indicador -  um agasalho?) O casaco do genro, pesado, gigante na proporção de carnes tão pequeninas e murchas, a compor o modelinho. Depois, a mala de mão, sempre a mala de mão, como quem está de partida, sempre de partida. Para onde? (Quando não se sabe de onde se está a partir, nem que tipo de existência já somos, é possível traçar um objectivo, ou um destino?).

Vemos-te assim, qual espantalho pequenino, avó.  E queremos muito rir, de tanto querer chorar, de tanto não saber o que dizer ou sentir. De tanto querer que chegasses à sala e soubesses quem somos. E que a saia não se veste com o pijama por baixo, avó.  E que o casaco do marido da tua filha não é adequado para ti, avó.

Então, hoje não vou para o trabalho?
Hoje é sábado avó, não vais para o "trabalho". Hoje ficamos aqui todos em casa, senta-te aí, senta-te.

Nãããoooo! Avó não tires a bebé do parque, tu já não podes com ela, ela cai, tu cais, aleijam-se.
Oh, oh, tão lindo, este meninooo, diz  surpresa, de olhar deliciado.
Avó, dá-ma cá. É uma menina avó. Senta-te aí que eu ponho-ta no colo um bocadinho, mas depois ela vai para o parque e deixa-a ficar ali a brincar, tu já não podes...

Nãããão! Avó, então?
Tu já não podes... Tu cais, ela cai....
... É uma menina... Não te disse já...?

Nãããoo. Avó! 
Deixa estar a menina!
.. Tu já não podes com ela, ... é perigoso. Não te disse já que... 
Não posso porquê? Não posso pegar no menino? Anda cá bebé.... E estende também ela os braços, uma bebé tão velhinha, vestido de espantalho. 

Acabou-se! A menina vem para o meu colo.
A avó está triste. 
Eu sei, mas que posso eu fazer? Ela não compreende.... que já não pode, que podem cair as duas, que é perigoso...
Avó! Olha, tu já lhe pegaste um bocadinho, não já? Mas não podes tirá-la assim do parque, porque é preciso muita força e tu já não podes, é perigoso para as duas. Percebes?

Pois.
Olha um menino tão ´benito´, tão ´benito´. Oooh...
Pega na mala e aproxima-se da porta, estará na hora de ir para o trabalho, alguém a levará, alguém a irá buscar. 
Porque tardam? Hoje não vou para o trabalho? Quem é esta gente?
Olha, um bebé! Tão ´benito´, é teu?

O sol, na nossa casa de meninas, cheira a pinheiros e brincadeiras.
Hoje, brincam os nossos filhos e nós vivemo-nos ali há décadas,  ainda a perceber como é que passámos de filhas com pais, a mães com filhos e avós,  assim, num abrir e fechar de olhos. E com avó velhinha, aquela que é hoje a bisa dos nossos filhos.

Para ela, o fim do dia não pode estar longe e, por isso, as portadas da casa têm que se fechar. 
Primeiro as do meu quarto, depois estas todas que para aqui estão. Está de noite, não percebo porque é que esta gente não vai embora!

Mããee! Deixe estar as portadas abertas, ainda é dia, não vê? Está sol. À noite é que se fecham as portadas, deixe estar isso aberto e venha fazer o seu croché aqui para o pé da gente, vá.
Olha lá (diz baixinho), esta gente não se vai embora hoje? 
Não mãe, elas dormem cá com os pequeninos, só vão embora amanhã.
E onde dorme 'isto' tudo?
Não se preocupe que elas têm os quartos delas. 
Oooh, olha ali outro bebé!
São os seus bisnetos! Então, olhe lá, acha que eles são filhos de quem?
Pois.
Acha que eles são filhos de quem, mãe?
Pois. 'Nã' sei! E ri-se, como uma menina traquina que não entende conversa de adultos.
São filhos das suas netas, olhe aqui!
Hum, pois, pois. São bonitas! Bom, vou me 'adeitar'. Esta gente não se vai embora? Está de noite.

Oh avóooo. Deixa as portadas abertas, que ainda é de dia, avó.
Avó?
Hum? 
Deixa as portadas abertas que ainda é de dia.
Vou-me 'adeitar'.
Está bem, vai lá. 

Sei que não sabes que é Verão mas sabes como te chamas. 
Como se chama dona Catarina, perguntam-te muitas vezes, nos últimos anos. Ca- caaa... ta...catariii.... Eu? Chamo-me Catarina-da-Silva-Pereira! Respondes quase cantando.

Mas não te lembras, com certeza, que por vezes te chamava pombinha, na brincadeira, quando telefonavas aqui para a minha casa. Sei que sabes que esta casa é um sítio onde estás bem, mas não sabes que tu também já tiveste uma, onde tinhas um marido e recebias os netos com pão e fiambre fresquinho, que compravas com dinheiro, avó.

Di-nhei-ro! Dinheiro é aquilo que te esforçavas muito por poupar, que depois passaste a achar que não tinhas de todo e que fazia falta para alguma coisa que já não sabias bem o que seria e que hoje não fazes a mínima ideia se é coisa que se coma ou se enfie nos pés.

Sei que o teu coração ainda sabe caminhos para o amor e, sabes uma coisa avó, isso faz-me muita confusão. Como pode alguém gostar de outro alguém sem ter memória da história que o desenhou? E sobre os dias em que acordas de chorinho enrugado de menina perdida? Tanta lágrima desnorteada. Como chora um coração uma filha que a cabeça esqueceu?

Amanheceu novamente. Tudo dorme ainda. Ela já esqueceu que dentro dos quartos de porta fechada há gente que, por acaso, são as netas com os maridos e os respectivos filhos que, por seu lado, são seus bisnetos. Que são bebés que ela já conhece e que vai chamar menino à menina, e menina ao menino.
Com o roupeiro ali à mão, adiantou trabalho àquela pessoa simpática que todos os dias cuida dela, e tratou de se vestir. Calcinhas quentinhas, saia, camisinha apertada até cima, colar de pérolas e até brinquinhos. Tudo por cima do pijama e de um soutien algures empoleirado num braço.

Olha para as escadas que dão acesso ao primeiro andar da casa e bate palmas, como quem chama, sem chamar. Porque não sabe quem está a chamar, nem porquê. Tem fome. 

Dos quartos começa a sair a algazarra em forma de gente pequenina.
Oooohhh, olha um, dois bebés! Tão ´benitooooss'! São de quem?
Sorri. E pousa a mala de mão um bocadinho no chão. 
O trabalho pode esperar. 












terça-feira, 29 de julho de 2014

Carta a quem vai cuidar da minha filha



Está em boa idade. Vai-lhe fazer bem, a ela e a si. Só custam os primeiros dias.
São coisas que se dizem, os ouvidos lá ouvem.
Quando nos preparamos para colocar a nossa bebé nos braços de outros alguém, queremos muito, muito, que o nosso nariz fique como o do lobo mau do Capuchinho Vermelho:
"Graaaande, para te poder cheirar melhor minha filha!".

Começam as despedidas silenciosas de um tempo de total dedicação, de um ano que já quase passou, e que foi tão intenso, tão rápido, irrepetível. Começam as saudades a provocar dores cá dentro. Deixa-me cheirar-te, anda cá, hoje adormeço-te ao colo, só porque sim.

A prever que o tempo vai ser curto na hora de te deixar, que não vai haver tempo para fazer uma adaptação gradual como desejaria, imagino uma carta para dar a ler a quem agora vai fazer o meu papel durante o dia. Não tem nada a ver com os questionários para melhor conhecer o bebé que fornecem na altura da inscrição. Nãããooo.

O que vos quero dizer é que é preciso ter cuidado com  a minha bebé.
Ela é mais doce que o Mel. É bem capaz de sorrir, com os seus três dentinhos de três tamanhos, enquanto pousa a bochecha no ombro e esconde o olhar maroto. Complicado.
Se fizerem o som de um cavalinho, começa a dar saltinhos, de braços esticados na vossa direcção: está a pedir que assumam o papel do animal, têm mesmo que saltar, enquanto ela se ri à gargalhada. É preciso saber lidar com isto.
Contem-lhe uma pequena história, imitem o som dos animais, toquem à campaínha no seu nariz e peçam para entrar, que ela bate palminhas e, às vezes, cuidado, fica tão, tão feliz, que é bem capaz de vos apertar as bochechas entre mãos, aproximar o narizinho e vos dar um beijinho. Lá está, estejam preparadas. 
Na hora das refeições não percam muito tempo entre colheres de sopa e fruta, que ela gosta de comer tudo seguidinho mas, se estiver algo pensativa, cantem-lhe "o meu chapéu tem três bicos" e quando fizer aquele sorriso rasgado, aproveitem e ponham outra colher lá para dentro. Técnica difícil esta, mas com o tempo, entram no ritmo.
Quando acordar dos seus soninhos e vos estender as mãos, não receiem, quer só dar-vos o maior e mais cheiroso abraço de todos.
Qualquer dúvida, telefonem-me. Sim, telefonem-me logo que eu... 
... Estou habituada a tanta doçura.

Assinado:
Mãe da Inês Mel.

Acabo de ver a minha caixa de email.
Ainda não é desta que consegui um trabalho.
Não sei se ponha o capuchinho vermelho e me esconda na floresta por uns minutos ou se me vista de lobo.
Escolho o lobo, mais uma vez. Preciso de um nariz graaandee, como o do lobo mau. Para inspirar muito fundo e voltar a expirar.

Life goes on.