segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O fim do mundo em cuecas

Amanheceu mas parece que não dormi nada ou, pelo menos, que não descansei.
De três em três horas o "relogiozinho" toca religiosamente, que é como quem diz, a Inês faz aquele barulhinho delicado de gatinha. Está a chorar, tem fome. Levantar, leitinho, deitar e dormir. 

Estamos em casa.
Estamos em casa? Ó meu Deus, estamos em casa. Agora o pequeno-almoço já não vem ter à cama pela mão da auxiliar, temos que planear e fazer o almoço e o jantar, fazer compras, tratar das roupas,  arrumar e limpar a casa... A tratar sozinhos da Inês. Será que sabemos fazer tudo como deve ser a esta pessoa pequenina e frágil que saiu da minha barriga ainda agora? 
Estou com dores, limitada fisicamente. A cabeça? A cabeça está um caos.
É o fim do mundo em cuecas.


(Mas eu não passei quase nove meses a organizar tudo?)


 - Telefona à tua mãe.
 - Queres que ela venha cá hoje?
 - Não, quero que ela venha e durma cá hoje! Precisamos de ajuda!

É importante dar o grito. 
Pedir ajuda e saber aceitá-la.
Chorar se for preciso. Claro que é preciso.
As hormonas não perdoam. 

Passou um mês sobre o fim do mundo e sobrevivemos. Naquele dia não parecia ser possível. 
A Inês tornou-se uma princesa. Tomou conta do castelo.
Nós tornámo-nos pais. Agora também nós sabemos o que é esta coisa de gostar de um filho. Sabemos mas nem por isso conseguimos explicar esta dimensão de sentimento, sem fronteira, irracional.

Perguntam-me, muitas vezes, como está a ser. 
"Está a ser maravilhoso e caótico". Como, de resto, tem que ser.



terça-feira, 10 de setembro de 2013

O beijo do bebé: Mel e agulhas

Não recordo como foi o primeiro segundo. Nem o segundo, muito menos o terceiro. Diluiram-se na emoção do momento. Não fiquei logo de rastos.

O parto foi lindo. Anestesia. Um bocadinho. Agarro a mão macia da anestesista, a minha mais recente amiga e companheira e erguem-te ao nível dos meus olhos. As tuas mãozinhas minúsculas cumprimentam-se uma à outra, sofregas de vida, e choras. Sinto-te na minha vida. Mais um bocadinho e põem-te ao lado da minha bochecha: Dá um beijinho à mãe, dá!

O melhor beijo da minha vida. O quentinho da minha bebé na minha cara. A minha bebé, na minha bochecha. Quentinha.

Pergunto, com um espírito de colaboração algo estranho: Posso chorar?
Pooooode....
E caem-me as lágrimas instantaneamente, tão quentes. Como o beijo da minha menina.
Chorar de felicidade talvez seja melhor ainda do que rir.

Um bocadinho passa. E outro. E outros tantos. Os níveis de açucar estão a ser controlados. Lá longe, numa sala que não sei onde é, está a minha menina do beijo quentinho, que já não quero deixar de ver. Que já só quero ver e que não há meio de chegar. A quem quero dar de mamar. Muito, quero muito.

Não me recordo como foi o primeiro segundo em que tentaste encontrar, com um instinto natural e a desenvoltura de uma menina grande, consolo no meu peito. Nem do segundo, muito menos do terceiro. Talvez nesses primeiros minutos o romantismo de tudo o que vivíamos juntos - eu, tu e o pai - tenha sido suficiente para esconder as agulhas. Talvez.

Mas eram muitas. Tantas. Ou seriam poucas, mas muito afiadas? Seria sempre a mesma, que passava de um peito para o outro, mais veloz que uma pantera, para estar sempre lá, sempre que a minha bebé queria mamar, sempre que eu queria amamentar?

Isto é normal sra. enfermeira? Dói tanto.
Isto é normal doutora? É insuportável. Parecem agulhas fininhas a entrar, e a sair, a entrar, e a sair... a entrar...

Escorrem-me as lágrimas. Já não são quentes. Não têm temperatura porque o desespero não  merece graus certos. Olho para o tecto e respiro como posso. O B. beija-me, afaga-me os cabelos, a alma, cede-me o braço para morder, acredita comigo que tudo vai passar.
Não passa.

Mas quando passa doutora? Esta a ser muito doloroso.
Vai passar, vai passar, aguente mãe. Faça assim, faça assado, faça cozido. Aguente.
Com a subida do leite melhora. Com a subida do leite piora e depois melhora. É normal, todas passam por isto. Aguente. Aguente-se! Como é que está a fazer, deixe ver.
Faça assim, faça assado, faça cozido.
Mas, sobretudo aguente-se mãe! Faz parte!

Não aguento. Quero desistir.
As lágrimas não têm temperatura, nem cor, nem servem de nada. As agulhas, filhas da mãe, não se vão embora. Não é possível aguentar. Mas como aguentam as outras? Como? Sentem assim, estas filhas da mãe a massacrar o corpo e a alma?

Desistir. Não posso. As outras aguentaram. Quero lembrar-me das experiências más que me contaram sobre o acto romântico de amamentar. Quero-me comparar com elas. Quero alívio para esta culpa que me mata. Quero alívio para esta dor fininha, para este sofrimento refinado que as filhas da mãe das agulhas reservaram para mim.
Mas não encontro consolo na dor das outras. A dor delas, as que desistiram só mais tarde, mete quase sempre mamilos em sangue, bebés que bolsam leite com sangue - é normal, mãe, é normal, aguente, aguente-se! -, crostas assustadoras e outros horrores que, narrados, não podiam competir com as minhas agulhas. Simples agulhas. Simples?
Simples para quem?

Vou desistir doutora.
Não vai nada! Sabe que o leite materno...
Penso mas não digo em voz alta:
Sei, claro que sei. Se sei! Só por isso aguentei esta tortura tantas horas, tantos dias. Pareceram-me anos... Poupa-me. Não me martirizes mais. Cala-te. Sabes o que isto me custa? E não estou a falar só da dor fisica. Sabes o que esta decisão me rói a alma, impregnada de clichés, obviamente decidida a dar o leite mágico à sua menina, rendida ao romantismo do "beijo" do bebé no peito da mãe?
Sabes o que é uma mãe em construção a pôr em causa a capacidade de assumir a maternidade porque não aguentou um exército de agulhas, que, afinal, podem até ser só uma? Sabes? Cala-te.
Não me tortures porque só eu sei o que isto me está a doer. Tu és a médica, não me podes deixar desistir à primeira dificuldade, nem à segunda, nem à terceira. Sim, fazes bem. Mas não queiras ser cúmplice da derrota de uma menina que se está a consumir em dor. Não me julgues, não é esse o teu papel. Ajuda-me só.
E dá-me um beijinho.

Mais vale um biberon com muito amor do que uma mamada com dor.
Lembro-me da enfermeira. Da que disse isto e de outras que, entretanto, passam pelo quarto e me deixam conjuntos palavras, como resposta à minha alma nua e já roca.
Cada mulher tem o seu nível de tolerância à dor e sensibilidades diferentes, não tem que se culpabilizar se...
Amamentar não tem que ser um martírio. Os bebés crescem todos, mesmo sem o leite da mãe...E isso das doenças, nem sempre é como se diz, nada é garantido...
A maior causa de abandono da amamentação é a dor...

Mas...
Pois.
Enfrentar o exército não faz sentido quando não sobra bochecha para receber o teu beijinho quente, nem abraço tranquilo para te embalar no meu amor.

Quero beijinhos quentinhos e já está  na hora de te acordar e ver esse teu ritual delicioso a espreguiçares-te, minha princesa. Agora chamo-te assim e não acho lamechas.
És a minha princesa. E estou de guarda ao teu castelo. E digo-te mais, podem vir exércitos, que eu enfrento-os contigo e por ti.

Se for preciso, dou-lhes com os biberons que, entretanto, coloriram a cozinha da nossa casa.