terça-feira, 20 de maio de 2014

A menina


Vou ali à menina, já venho.

Ela não sonha que cá por casa lhe chamamos, carinhosamente, assim. Há poucos meses descobri que se chama Ana mas, cá por casa, continuamos a chamar menina à senhora da fruta. Afinal, é assim que ela me começou a chamar desde os primeiros dias, quando ainda não sabíamos nada uma da outra. 
"Então, m´níííína", 'tá boazinha?", perguntava-me,  com sotaque "lá de xima" bem carregado. E, portanto, eu, desconhecendo-lhe o nome, adoptei para ela a mesma medida.

É tosca a barraca onde a menina vende os legumes, as frutas e as flores. Tão tosca que não apetece sair dali, tão grande é a proximidade que naquele bocadinho se respira, entre os cheiros adocicados das maçãs de Lamego, as laranjas algarvias - doces que são, prove lá! -  e das batatas doces de Aljezur - dizem que são boas, eu cá não gosto de nenhuma!.

Ali há coisinhas que lembram uma aldeia. Há feijões e grãos em baldes, com embalagens de comida take away a servir de medida, há "promoções baratas" escritas num  qualquer pedaço de cartolina com uma setinha para baixo, um carrinho de hipermercado saído não sei de onde só com cebolas,
há uma bancada improvisada forrada a papel de embrulho natalício (que mimo!) e também, claro, bolinhas brilhantes alusivas à quadra, que ficaram esquecidas no tecto. Estas coisas, convenhamos, aconchegam uma pessoa.

[Telefone]
...Olhe lá, onde é que você foi arranjar aquelas batatas doces do outro dia? Estabam quase todas todas podres homem!Tive que as escolher! Puta que o pariu!
Outra coisa, amanhã a ver se bem cedo! O quê? Olhe bocê num me diga isso, que no outro dia beio cedo, agora que lhe estou a pedir se bem tarde, dou lhe um puto dum amanho que bocê bai ber!
E quero uma placa de beringelas taméim...

Castiça que só ela. 
Ao fim de uns dois anos de convivência, sei o essencial sobre a D. Ana. Por exemplo, que é muitíssimo trabalhadora, "balentona" mesmo. E que não suporta que os clientes vão ao engano!
De navalha sempre à mão, é vê-la:
- Se é doce este melão, prove lá!
- Estes figos? Bons que são! Coma lá este para ver!
- Esta melancia é das docinhas, tome lá (e entretanto, já tirou pevides e tudo!)

Acho que ainda hoje a menina não sabe que me chamo como ela. Mas se ela se lembra que teve que ir à sua despensa buscar coentros porque eu, grávida, queria mesmo muito fazer uma açorda e já não havia nada? Lembra-se bem, pois.  Se ela se lembra de perguntar sempre pelos meus "paizinhos" que lá foram duas ou três vezes estes anos todos? Lembra-se, sim senhora. Se ela se lembra que a minha pequenina é três dias mais velha que a sua neta? Com certeza!

Ai, como ela está, gordinha, gordinha! Ela é sempre assim mansinha? Quando vier o b´rão, bai ber, bai parecer uma bassourinha!

Pesa a abóbora e diz-me: São 64 cêntimos.
Passo-lhe as moedas. Sai esbaforida por detrás da vitrina, aonde se dirigiu para fazer o troco.
Atão, disparate, ia lá cobrar agora a abóbora da m´nina. Nem pensar! É para a sopinha dela, leve lá.

Desde que a Inês começou a comer sopas acho que nunca mais consegui pagar a abóbora.

E quando ela começar a andar e a falar, ela que me benha cá pedir 'mananas', que eu dou-le, coisa tão boa, tão gordinha! É a cara do pai...





terça-feira, 6 de maio de 2014

Um sobrinho, dois sobrinhos


Talvez uma das coisas mais fantásticas do corpo humano seja a capacidade de gerar e desenvolver sentimentos. E se eles têm o motor no coração, como dizem, é então admirável a capacidade que ele tem de se encher e de se esticar.
Já pensaram nisto?

Uma das alturas em que o coração estica é quando a família cresce. Nascer mais alguém que pertence à família e, portanto, também um bocadinho a nós próprios é, lá está, fascinante.
Agora mesmo (daqui a bocado, daqui a umas horas...), está um bocadinho da minha irmã reinventado a pisar o mundo pela primeira vez. Uma extensão dela, ali, em forma de bebé, de gentinha pequenina. E, portanto, sinto-me a esticar, a esticar... Não dói, só é profundo e intenso. Há sempre elasticidade infinita para abraçar mais alguém na nossa vida. Ainda para mais, quando esse alguém é um pedacinho da minha irmã e um pedacinho do meu sobrinho, de agora em diante o mais velhinho. E, portanto, também é um pedacinho meu. E o diminuitivo aqui não serve para diminuir absolutamente nada. É tudo muito grande no dia em que a família cresce.

A esperança é grande.
Bem-vindo pedacinho de gente tão grande, senta-te aqui no meu abraço.
Imagino-te como o teu mano, perfeito.